terça-feira, 3 de setembro de 2013

O "Negrinho" que sobreviveu a FEBEM!

Este não é mais um desses relatos de superação pessoal, de cunho motivacional e repleto de chavões liberais. Trata-se da saga de um garoto brasileiro negro [afro-descendente], pobre e vitima de um Estado punitivo e estigmatizador. Segue neste texto um olhar sobre o filme “O Contador de Histórias”, baseado em fatos reais.


trailer do filme "O Contador de Histórias"


Roberto é o caçula de dez filhos de uma mulher negra que reside numa favela de Belo Horizonte. Analfabeta, tira o sustento da família do oficio de lavadeira. Preocupada com as condições cada vez mais precárias de moradia e alimentação a qual são submetidos diariamente, esta mineira assiste atentamente ao anuncio do Governo de Minas numa TV de tubo em preto e branco.

“Para que as crianças tenham um futuro, elas precisam de cinco coisas: o ‘F’ da fé, o ‘E’ da educação, o ‘B’ dos bons modos, o ‘E’ de esperança e o ‘M’ da moral. Sabem aonde elas vão encontrar tudo isso? Na FEBEM! Aqui, as crianças carentes vão terão a chance de se tornar homens do bem. Terão a chance de se tornar médicos, engenheiros, advogados. FEBEM, mais uma vitória do nosso Governo!”

Vislumbrada com a possibilidade de tornar a vida melhor para o caçula, esta mãe o entrega aos cuidados desta instituição na esperança de que retorne para o lar “doutor”.

Esta história se passa na década de 70, momento em que o Brasil estava mergulhado nos “anos de chumbo”, período anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), vigorava o Código de Menores. O Estado já havia superado a fase dos “pequenos adultos” quando os adolescentes eram submetidos ao mesmo código penal que os adultos, mas ainda mantinha uma relação conflituosa e punitiva, quando ainda se nomeavam sujeitos desta faixa etária de “menores”. Era o chamado "Estado tutelar". Imperava a criminalização da pobreza, a justiça dos estereótipos e a ausência de garantias de direitos.

Surgem diversas instituições estatais que recolhiam as crianças vitimas da desigualdade nos espaços urbanos. Não havia política de proteção à família, não havia um olhar com vista a auxiliar a família à superar as expressões da questão social, tão pouco uma política redistribuitiva e de assistência social que possibilitasse as famílias próximas a linha da miséria que assumissem seu papel de proteção diante de suas crianças. Ao contrário, nesses casos, o Estado assumia para si a tutela dos “menores” e os retirava da família levando-os a instituições como a FEBEM.

Roberto é um desses garotos. Distante da proteção familiar, agora tem o Estado como pai. Anestesiado pela propaganda Estatal, Roberto sonhava encontrar na FEBEM um ambiente harmonioso e propicio para o seu desenvolvimento. Sonhava encontrar uma espécie de circo. Longe disso! O garotinho franzino, negro e de roupas surradas pela miséria cotidiana, encontrou um ambiente hostil, de coerção e disciplina forçada.

A esperança foi-se embora, deu lugar ao medo, que por sua vez deu lugar a desesperança. Mas a desesperança não veio desacompanhada, trouxe consigo a malandragem, as fugas, a delinqüência, a vida na rua, os roubos, o estupro, toda a violência da marginalidade, com uma grande dose de preconceito racial.

Poderia estender uma série de situações retratadas pelo filme, mas resumo em dizer que a trama é um tapa na cara daqueles que almejam o aumento das medidas punitivas para crianças e adolescentes. Defender a redução da maioridade penal é defender a volta à um passado superado. Não é a toa que criminalidade e pobreza andam de mãos dadas. Não é a toa que 60% dos adolescentes em conflitos com a lei internados no Brasil são negros [dados de 2004]. 

Este longa metragem é perfeito para esta discussão, uma vez que conta a história de tanto Robertos e Robertas que são julgados inaptos para a vida em sociedade, sendo a própria sociedade – com suas desigualdades sociais – quem os gera desta forma.

Mesmo neste cenário de incertezas e tragédias sociais e pessoais, Roberto sobrevive. Em 1979 é adotado por uma pedagoga francesa, Margherit Duvas. Mora oito anos em Marselha (França) e retorna ao Brasil na década de 80 para cursar Pedagogia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Retorna para os braços de sua mãe lavadeira como esta imaginava vê-lo novamente, “doutor”. Adota outros 13 filhos – todos ex-meninos de rua – e é considerado o maior contador de histórias da atualidade.


Roberto é o negrinho que sobreviveu, dentre tantos outros que não tiveram a mesma sorte e foram abortados em vida pela pátria mãe gentil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário