Renato Russo é sem duvida o músico que melhor
expressou as fases transitórias da juventude brasileira desde a revolta com o
regime militar, à esperança dos tempos de “diretas já” e reabertura política,
até a desesperança e o descaminho diante do caótico cenário neoliberal da
década de 90. Que jovem contemporâneo de Renato nunca cerrou
os punhos ao som de “Que país é este?”. Embora a canção seja tema no terceiro
álbum da Legião Urbana lançado em 1987, foi durante a caduca ditadura militar e
com influência do punk inglês que nasce o hit.
A contestação é tema presente em toda a discografia da Legião
Urbana, mesclam-se a elas canções bucólicas e outras que soam com tom
profético de hinos religiosos que levavam reflexões a quem se dispusesse a
ouvir.
“É preciso amar as pessoas
como se não houvesse amanhã, porque se você parar pra pensar, na verdade não há!”
(País e Filhos, 1989).
Mas que canção seria mais emblemática
para encabeçar a trilha sonora desta juventude que “Geração Coca-Cola”?
Quando nascemos fomos programados
A receber o que
vocês Nos empurraram com os enlatados
Dos USA, de 9 às 6.
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrialMas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês.
É quase que um vômito, um tapa na cara da sociedade, um misto de repúdio e vontade de mudar os rumos. Com toda a energia do punk inglês radicalizado no planalto central, Renato anuncia a que veio e quem é esta geração:
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola.
Conhecendo o repertório da
Legião, nos soa estranho uma composição em que se intitulem “burgueses sem
religião”, não foi a toa que Renato Russo foi tomado como um profeta moderno,
um John Lennon brasileiro. O misticismo do caçula da família Manfredini
permeava as letras e fazia a cabeça da moçada.
Nunca soube o que de fato
este refrão significasse, mas tenho uma dedução:
Somos os filhos da revolução:
esta é outra canção criada por Renato enquanto vocalista da então banda punk
Aborto Elétrico. Seu pano de fundo é o declínio lento e gradual da ditadura
militar. Os militares insistiam em chamar o golpe de “Revolução de 64” . Para mim esta primeira
frase do refrão é uma clara ironia que em outras palavras diz: “estão
escandalizados com esses punks vestidos de roupas rasgadas e questionadores da
ordem e da moral? Parabéns, eis os filhos da sua “revolução!”
Depois de vinte anos na escola
Não é difícil aprenderTodas a manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser?
Somos burgueses sem religião:
Renato era filho da classe média brasileira, tinha sérios conflitos com seu
pai, um economista de direita. Nunca foi um ateu, era conhecido por seus
colegas pela busca da espiritualidade. Este verso me parece ter inspiração nos iluministas franceses, os burgueses revolucionários que subverteram a ordem
do feudalismo, desafiaram a igreja e viraram a mesa do Estado. Invocam a mesma
ousadia daqueles que decapitaram o rei da França para anunciar que está na hora
desta geração romper com a sociedade vigente.
Para mim fica evidente a pretensão
revolucionária nos versos seguintes:
Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então, vocês
vão verSuas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis.
Somos os filhos da
revolução
Somos burgueses sem
religião
Somos o futuro da
nação
Geração Coca-Cola.
Posso ter viajado nesta análise, mas se terminou esta leitura com vontade de ouvir Legião Urbana tomando uma Coca-Cola gelada, já cumpri meu objetivo (risos).
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