Este não é mais um desses relatos de superação pessoal, de cunho motivacional e repleto de chavões liberais. Trata-se da saga de um garoto brasileiro negro [afro-descendente], pobre e vitima de um Estado punitivo e estigmatizador. Segue neste texto um olhar sobre o filme “O Contador de Histórias”, baseado em fatos reais.
trailer do filme "O Contador de Histórias"
Roberto é o caçula de dez filhos de uma mulher negra que
reside numa favela de Belo Horizonte. Analfabeta, tira o sustento da família do
oficio de lavadeira. Preocupada com as condições cada vez mais precárias de
moradia e alimentação a qual são submetidos diariamente, esta mineira assiste
atentamente ao anuncio do Governo de Minas numa TV de tubo em preto e branco.
“Para que as crianças
tenham um futuro, elas precisam de cinco coisas: o ‘F’ da fé, o ‘E’ da
educação, o ‘B’ dos bons modos, o ‘E’ de esperança e o ‘M’ da moral. Sabem
aonde elas vão encontrar tudo isso? Na FEBEM! Aqui, as crianças carentes vão terão
a chance de se tornar homens do bem. Terão a chance de se tornar médicos,
engenheiros, advogados. FEBEM, mais uma vitória do nosso Governo!”
Vislumbrada com a possibilidade de tornar a vida melhor para o caçula, esta
mãe o entrega aos cuidados desta instituição na esperança de
que retorne para o lar “doutor”.
Esta história se passa na década de 70, momento em que o
Brasil estava mergulhado nos “anos de chumbo”, período anterior ao Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA), vigorava o Código de Menores. O Estado já havia superado
a fase dos “pequenos adultos” quando os adolescentes eram submetidos ao mesmo
código penal que os adultos, mas ainda mantinha uma relação conflituosa e
punitiva, quando ainda se nomeavam sujeitos desta faixa etária de “menores”. Era o chamado "Estado tutelar". Imperava a criminalização da pobreza, a justiça dos estereótipos e a ausência de garantias de direitos.
Surgem diversas instituições estatais que recolhiam as
crianças vitimas da desigualdade nos espaços urbanos. Não havia política de
proteção à família, não havia um olhar com vista a auxiliar a família à superar
as expressões da questão social, tão pouco uma política redistribuitiva e de
assistência social que possibilitasse as famílias próximas a linha da miséria que assumissem seu papel de proteção diante de suas crianças. Ao contrário,
nesses casos, o Estado assumia para si a tutela dos “menores” e os retirava da
família levando-os a instituições como a FEBEM.
Roberto é um desses garotos. Distante da proteção familiar,
agora tem o Estado como pai. Anestesiado pela propaganda Estatal, Roberto
sonhava encontrar na FEBEM um ambiente harmonioso e propicio para o seu desenvolvimento.
Sonhava encontrar uma espécie de circo. Longe disso! O garotinho franzino,
negro e de roupas surradas pela miséria cotidiana, encontrou um
ambiente hostil, de coerção e disciplina forçada.
A esperança foi-se embora, deu lugar ao medo, que por sua
vez deu lugar a desesperança. Mas a desesperança não veio desacompanhada,
trouxe consigo a malandragem, as fugas, a delinqüência, a vida na rua, os
roubos, o estupro, toda a violência da marginalidade, com uma grande dose de preconceito racial.
Poderia estender uma série de situações retratadas pelo
filme, mas resumo em dizer que a trama é um tapa na cara daqueles que almejam o
aumento das medidas punitivas para crianças e adolescentes. Defender a redução
da maioridade penal é defender a volta à um passado superado. Não é a toa que criminalidade
e pobreza andam de mãos dadas. Não é a toa que 60% dos adolescentes em
conflitos com a lei internados no Brasil são negros [dados de 2004].
Este longa
metragem é perfeito para esta discussão, uma vez que conta a história de tanto
Robertos e Robertas que são julgados inaptos para a vida em sociedade, sendo a
própria sociedade – com suas desigualdades sociais – quem os gera desta forma.
Mesmo neste cenário de incertezas e tragédias sociais e
pessoais, Roberto sobrevive. Em 1979 é adotado por uma pedagoga francesa, Margherit
Duvas. Mora oito anos em Marselha (França) e retorna ao Brasil na década de 80
para cursar Pedagogia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Retorna
para os braços de sua mãe lavadeira como esta imaginava vê-lo novamente, “doutor”.
Adota outros 13 filhos – todos ex-meninos de rua – e é considerado o maior
contador de histórias da atualidade.
Roberto é o negrinho que sobreviveu, dentre tantos outros que
não tiveram a mesma sorte e foram abortados em vida pela pátria mãe gentil.
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