quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O Morador do Quarto 30

Paranhos é uma pequena cidade do interior sul-mato-grossense. Espremida entre fazendas postas numa planície chapada e com única estrada de acesso sublinhada pelas cercas de madeiras ligadas a arames. As portas da cidadela de cerca de 10 mil habitantes, um acampamento do MST em situação precária para recepcionar os viajantes que ali chegam, deixa a entender as contradições que um desavisado encontrara no percurso.



Paranhos é um retrato de tantas outras cidades do interior brasileiro. Tão distante dos grandes centros urbanos, a pobreza e a ausência de estruturas necessárias coexistem com as grandes propriedades fundiárias e o invejável passeio de caminhonetes 4x4 dos que ostentam a glória de ter enriquecido aonde muitos empobrecem.

Estive na cidade por ocasião do casamento de um primo – na verdade, primo da minha namorada, mas que o considero desta forma. A receptividade dos habitantes é incrível. Alegram-se com a presença dos “de fora” e a cada conversa surge uma amizade, afinal, em dois dias numa cidade deste porte não seria surpresa que encontrasse cada um pelo menos duas vezes.


Estamos numa fronteira sul-americana. Quando cessa a espessa camada de asfalto e se vê numa área quase circular a construção de um estandarte de bandeiras, estamos no Paraguai. As ruas de chão batido e as motocicletas que circulam pilotadas por crianças, homens e mulheres - às vezes amontoados em três num mesmo veículo - todos sem capacetes dão o tom da cidade vizinha, Ypejhú-PY.

No alto, o monumento que demarca a fronteira com o Paraguai (Ypejhú).

O Hotel Hebrom não tem qualquer aspecto de que mereça alguma estrela, mas a simpatia dos que ali atendem dispensa a necessidade do “luxo”. Os quartos estão dispostos em dois complexos, todos com as portas voltadas para fora, sem corredores. Um pequeno prédio com quatro quartos em baixo, quatro em cima. Outros tantos quartos se encontram em três partes de forma rasteira – sem andares – que se encontra em formato de “U”, mas ao contrário.

Em frente do hotel, uma costumeira praça com caminho de passeio, diversos bancos e um parquinho de chão de areia cercados de decoração de natalina com materiais recicláveis e dezenas de árvores com troncos encapados em material TNT.


Numa preguiçosa manhã de domingo em que o sol escaldante já nos presenteava com intenso calor, fui ao pequeno refeitório do Hotel para o café matinal. Pães franceses, fatias de cuca, presunto e mussarela. Era tudo. Sem faltar o tradicional café com leite. Foi servindo-me que esbarrei sem querer em Juan Carlos, que na intenção de desculpar-se proferiu alguma palavra em espanhol. “É paraguaio!” – pensei. Sentando numa mesa próxima, imaginei como seria interessante compartilhar alguns dedos de prosa com um filho de outra pátria. Foi quando decidi iniciar uma conversa da maneira mais original que me veio à cabeça:

– Que dia quente ein amigo!

– Yo no hablo português muy bien – respondeu meio sem jeito.

Arriscando um portunhol que não tenho coragem de transcrever, indaguei – É paraguaio?

– No – uma pausa para engolir o pão – Soy cubano!

Que espanto. Um cubano nos confins do Mato Grosso do Sul, morando ali no quarto 30 do hotel Hebrom numa fronteira seca com o Paraguai? Logo descobri que se tratava de um médico cubano, desses que desembarcaram no Brasil para trabalhar pelo programa “Mais Médicos”.

Juan Carlos já é experiente em missões cubanas a países que solicitam ajuda para suprir a escassez desse tipo de “mão-de-obra”. Por aqui como sabemos, a questão central se dá pela falta de interesse desta categoria extremamente elitizada em clinicar em cidades como esta. Este cubano já passou por Timor Leste, Haiti, Paquistão e Venezuela. Quando perguntado qual experiência mais lhe agradou, não pensou duas vezes ao responder Venezuela. No país do saudoso Hugo Chávez, o programa “Bairro adentro” levou médicos as favelas e comunidades mais carentes, aonde os serviços públicos rareavam. Ao contrário, a experiência que mais lhe desagradou foi no Paquistão, país majoritariamente muçulmano cravado entre o Oriente Médio e a Índia. O permanente conflito religioso entre muçulmanos e hindus geram assassinatos, atentados e todo tipo de violência advinda da intolerância religiosa.

Embora entenda que estava entrando num assunto constrangedor, não poderia deixar de perguntar sobre os honorários. Juan titubeou, enquanto tentava responder ficava evidente a preocupação em fazê-lo de forma cuidadosa. O cubano me explicou que a maior parte dos R$ 10 mil são destinados a uma conta pessoal que mantém para usufruir quando regressar a ilha, retira para si apenas uma quantia necessária para viver tranquilamente no Brasil. Rebolou para me explicar da porque uma quantia é depositada para o governo cubano, se justificou lembrando que contribuíam para que seu país oferecesse educação, saúde, cultura, serviços públicos de qualidade para seus conterrâneos. A excessiva preocupação da justificativa me fez intervir:

– Claro, compreendo Juan. Defendo a Revolução Cubana. Sou militante do Partido Comunista do Brasil!

O ar mudou. Estava expresso em seu olha que lhe tranquilizava com esta informação. Juan festejou e me disse das besteiras que já ouviu da boca de brasileiros sobre o regime cubano e indignou-se ao falar da lógica médica brasileira:

Juan Carlos Martinez Valido
– Con la salud de la gente no “se lucra”!

A simplicidade do cubano seja nos trajes, moradia ou nas relações pessoais contrasta com a pompa que geralmente pairam sobre os médicos brasileiros. Esta seria uma boa explicação para revelar porque Juan teceu tantos elogios a hospitalidade sul-mato-grossense. Por aqui é raro ter uma relação igualmente nivelada entre médicos e pacientes.

A conversa seguiu sobre tantos outros assuntos. Saindo do ambiente da conversa chamei a funcionária do hotel para tirar uma foto com o cubano. Juan sorriu meio sem jeito e entendi que a tietagem era um tanto vergonhosa, mas prossegui, afinal, foi uma honra conhecer Juan, um abnegado latino-americano que pôs seus conhecimentos a serviço do nosso povo.

Juan Carlos Martinez Valido - encontrei o nome completo no site do Ministério da Saúde - se despediu com uma saudação tipicamente brasileira e seguiu rumo ao quarto 30 do hotel Hebrom, local em que se instalou provisoriamente.

Um comentário: